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O esporão

Ornitorrinco – s.m. (Do gr. ornis, ornithos. ave + Rhynkhos. bico.) Ornithorhynchus anatinus. Mamífero monotremo, da subclasse dos prototérios, adaptado à vida aquática. Alcança 40 cm de comprimento, tem bico córneo, semelhante ao bico de pato, pés espalmados e rabo chato. É ovíparo. (...) O macho tem um esporão venenoso nas patas posteriores. Este animal conserva certas características reptilianas, principalmente uma homeotermia imperfeita.

 

(Grande Enciclópedia Larousse Cultural. vol. 18, 1998 apud. Francisco de Oliveira, O ornitorrinco)

No ano de 1973, o sociólogo Chico de Oliveira publicava a sua Crítica à razão dualista, estabelecendo um contraponto às formas preponderantes de interpretação das relações entre capitalismo, colonialidade e subdesenvolvimento na América Latina na segunda metade do século XX. À época, o instrumental teórico mobilizado pelos analistas da política econômica no Brasil se mantinha encapsulado em um quadro interpretativo que opunha desenvolvimento e precariedade, “modernidade” e “arcaísmo”, como dois extremos apartados. O binômio constituído pelas noções de “sociedade moderna” e “sociedade tradicional” conformava as interpretações dualistas da formação social na ex-colônia.

 

Em contrapartida, Oliveira desenvolve uma análise da expansão socioeconômica do capitalismo no Brasil, caracterizada pela simbiose orgânica entre desenvolvimento e precariedade, na qual o chamado “moderno” cresce e se alimenta da perpetuação do “arcaico”. Ao rejeitar a interpretação binária, Oliveira acentua o caráter “produtivo” da expansão da miséria e a definição do subdesenvolvimento como motor do sistema capitalista em sua face periférica.  O resultado configura um mosaico social e institucional que conjuga aspectos do desenvolvimento capitalista com a expansão e a intensificação da mais radical precariedade humana.

 

Já no início do século XXI, Oliveira recupera e atualiza sua tese para caracterizar a formação esdrúxula sobre a qual se apresenta a sociedade brasileira, recorrendo à imagem alegórica do ornitorrinco – animal enigmático e disforme, improvável na escala evolutiva de matriz darwinista, mamífero ovíparo com bico de pato que conserva características primitivas reptilianas. A metáfora zoomórfica retrata uma organização social multifacetada em que os extremos se sobrepõem e se retroalimentam: o velho e o novo, o arcaico e o moderno, o imundo e o asséptico.

 

No adentrar do século, as patas do ornitorrinco já extravasam as lagoas da Sociologia Econômica. Nos estudos urbanos, Mariana Fix e Pedro Arantes recorrem à alegoria proposta por Oliveira para caracterizar as cidades-globais brasileiras como metrópoles-ornitorrinco, com suas paisagens formadas por “arranha-céus ‘inteligentes’ implantados em avenidas sem esgoto, barracos de favela com antenas parabólicas, malabaristas no semáforo diante de carros blindados”*. Por sua vez, o sociólogo Alexandre Werneck concentra-se na imagem do “mosaico” subjacente à alegoria do ornitorrinco, caracterizando as composições fragmentárias sobre as quais se baseia a construção social de grupos milicianos que combinam atividades de extorsão, execução e comercialização de mercadorias ilícitas.

 

Inspirado nos insights de Oliveira e desdobrando suas análises em direção ao aparato penal e policial brasileiro, o Projeto Ornitorrinco procura visibilizar os processos contemporâneos de proliferação de novas tecnologias voltadas ao exercício institucionalizado do castigo em favor e benefício das velhas estruturas de poder e controle. Se há uma característica marcante do animal ornitorrinco a ser considerada no exame das mutações contemporâneas do sistema penal brasileiro, esta característica consiste em suas propriedades venenosas, remarcadas na epígrafe enciclopédica que antecede o ensaio de Chico de Oliveira.

* M. Fix e P. Arantes. São Paulo: Metrópole-Ornitorrinco.

Quem somos

Ricardo Campello

Professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador associado ao Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Realizou doutorado em Sociologia pela USP e pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (PPGAS/UNICAMP). Desenvolve pesquisas a respeito das atuais práticas de controle social e punição, sistema penal e prisional, monitoramento eletrônico, Genética Forense, abolicionismo penal e policial e novas tecnologias de subjetivação.

Maria Ozi 
Designer gráfica formada pelo IED, atua com criação e desenvolvimento de identidade visual. Seu projeto Oscar foi selecionado para a 11ª Bienal Brasileira de Design Gráfico e para o 29º Prêmio Design do Museu da Casa Brasileira. Em 2020, foi selecionada na chamada aberta ONU Global Call Out to Creatives – Help Stop the Spread of COVID-19. Participou da criação da marca comemorativa de 25 anos da Unifesp e desenvolveu identidades visuais para projetos culturais como Coletivo Villa-Lobos para Todos e Cronistas da Cidade. 

Sofia Fromer Manzalli

Atua na interseção entre pesquisa, comunicação e direitos humanos. É mestra e doutora em Saúde Coletiva pela Santa Casa de São Paulo, onde pesquisa o sistema prisional e os modos como a prisão atravessa a saúde de pessoas presas e de suas famílias. Idealizadora do Comunica Infográficos, projeto que transforma dados e pesquisas em narrativas acessíveis.

Marilha Gabriela Garau

Pesquisadora de pós-doutorado (PDR10-Faperj). Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Direito Penal e Política Criminal (UMA). Mestre em Direito Constitucional (UFF). Professora e pesquisadora vinculada ao Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC). Desenvolve pesquisas nas áreas de Justiça Criminal e Segurança Pública

Fábio Mallart

Professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde integra o coletivo de pesquisa e extensão ILHARGAS - Cidades, Políticas e Violências. É membro do Comitê Cidadania, Violência e Gestão Estatal da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e pesquisador do Núcleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Doutor em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Fez Pós-Doutorado no Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desenvolve pesquisas nas áreas de sociologia urbana, sociologia da punição, teoria sociológica e antropologia do Estado.

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