
Psicofármacos
Em 1957, Leo Sternbach lança ao mercado um novo composto, o qual alteraria o futuro da indústria de psicofármacos: os benzodiazepínicos. Mobilizados tanto como ansiolíticos quanto como hipnóticos, sedativos e anticonvulsivantes, as suas variações, como o diazepam e o clonazepam, conquistaram enorme popularidade ao longo dos anos 1970, nos Estados Unidos.
No Brasil, entre os anos de 2007 e 2010, o clonazepam tornou-se o princípio ativo mais ingerido no país. Somente no ano de 2013, a substância, popularmente conhecida como Rivotril, rendeu aos cofres da indústria farmacêutica a venda de 5,7 milhões de caixas.
Sabe-se que, atualmente, esses e outros psicofármacos disseminaram-se por todo o tecido social, desde as crianças genericamente diagnosticadas com déficit de atenção e hiperatividade, passando por estudantes universitários e empreendedores individuais, que perseguem um horizonte pautado por metas produtivistas intangíveis. Mas, e em instituições de controle social como as prisões e os manicômios judiciários? Qual é a funcionalidade estratégica desses medicamentos?


O químico Leo Sternbach, no laboratório da empresa farmacêutica Hoffman-La Roche, início dos anos 70
Superlotação, racionamento de água, espancamentos... torturas de múltiplas ordens. Fatores que compõem a experiência prisional e que, nas palavras de presos e presas, “abala o psicológico”. Nas prisões, o uso de psicofármacos configura-se como estratégia de gestão de espaços precários e superlotados, operando também na administração de sintomas gerados pelos próprios modos de funcionamento dos cárceres. Em suma, constata-se uma espécie de gestão neuroquímica.
Na bula X no cárcere
Haldol Decanoato. Este medicamento é indicado para o tratamento de manutenção de pacientes psicóticos crônicos estabilizados. O haloperidol é um antipsicótico particularmente eficaz contra os sintomas produtivos das psicoses, notadamente os delírios e as alucinações. O haloperidol exerce, também, uma ação sedativa em condições de excitação psicomotora.
Se do ângulo da teoria médica tal substância foi concebida para agir sobre delírios, alucinações ou quadros de agitação – sua face terapêutica –, em instituições como as prisões e os manicômios judiciários, o medicamento é reutilizado como instrumento punitivo. Ao combinar o suposto tratamento e o castigo na mesma substância, as instituições reconduzem uma prática presente na história da psiquiatria: os remédios como prolongamento da disciplina institucional no corpo.


Aí... comecei a tomar injeção, eles deixava eu pelada com um colchão pra mim deitar e outro pra me cobrir, cheio de rato. [...]. Haldol, haldol, eu babava... eu ficava toda torta, uma sensação horrível, eu não conseguia andar, falar, meu... eu ficava uns dois, três dias, lesada.
(ex-interna do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico I de Franco da Rocha – HCTP I)


Qualquer coisa tá trancando, qualquer coisa tá dando injeção, tá dopando, fazendo a gente babar. Eu, fizeram babar duas vezes.
(ex-interna do HCTP I de Franco da Rocha)
Explosão do patológico
Se nos anos 1950 e 1960, a psicanálise era o principal referencial teórico e terapêutico no campo da saúde mental, a partir da década de 1970, observa-se um declínio do paradigma do conflito em direção a uma psiquiatria biológica e farmaceuticamente orientada. Da chave psicanalítica sobre a mente desliza-se à reflexão neuroquímica sobre um cérebro deficitário, calibrado por remédios.
A proliferação mundial de categorias diagnósticas
Os números dos Manuais de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM), publicados pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), servem como base à prática psiquiátrica. Enquanto no DSM-II, publicado em 1968, constata-se a presença de 180 transtornos, doze anos depois, em 1980, a divulgação do DSM-III escancara a existência de 292 doenças, índices que, em 1994, com a quarta edição, ultrapassam as 350 categorias diagnósticas. Em maio de 2013, surge o DSM-V, que cataloga 450 transtornos mentais.
A lista de remédios do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté
No ano de 2015, em uma única semana, eram distribuídas 3978 cápsulas de psicofármacos via oral no HCTP de Taubaté, interior do estado de São Paulo (destaca-se a prescrição de Risperidona, com 469 pílulas/semana, que é um antipsicótico). No que concerne à ingestão da medicação clínica, em 7 dias, o consumo era de 1499 pílulas; o medicamento mais ingerido naquele ano era o Captopril (469 cápsulas), usado no tratamento de hipertensão, insuficiência cardíaca, dentre outros. No que tange à medicação SOS (contenção), a substância mais usada era o Fenergan (75 ampolas no mês de abril). Já no que se refere à medicação injetável (uso contínuo), o mais utilizado era o Haldol Decanoato, com 180 ampolas injetadas no mês de fevereiro.



Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté. Foto: Folha de São Paulo


Se ao menos originalmente havia uma adequação formal entre a estrutura do manicômio judiciário e as figuras que ele se propunha a abrigar - um semi-hospício ou semi-prisão para semi-loucos ou semi- criminosos, essa adequação formal foi, entretanto, desaparecendo ao longo do século XX e, hoje, nos encontramos frente a um semi-hospício ou semi-prisão que recebe indivíduos considerados doentes mentais.
(S. Carrara, A história esquecida: os manicômios judiciários no Brasil)

O corpo é a base orgânica sobre a qual incidem as mais variadas tecnologias de poder e controle. Em instituições como prisões e manicômios, a administração de pílulas e injetáveis possibilita a modulação neuroquímica dos corpos – a produção de corpos flexíveis –, que ora caminham por corredores escuros em alta velocidade; ora rastejam e babam por pavilhões lotados, com os dedos das mãos enrijecidos e retorcidos; ou que simplesmente dormem.
Indicações: